Sonhos


Flávio da Luz de Oliveira

- Acorda, Tony!

- O que foi, Pedro?

- Tu estavas gritando e batendo as pernas e braços enquanto falavas “o mapa”!

O Tony acordou totalmente, sentou na cama e contou para seu irmão:

- Quase toda noite eu sonho a mesma coisa. É tão real, parece que estou lá. As vezes o sonho começa num lugar conhecido, aqui mesmo na fazenda, outras começa num lugar desconhecido, mas sempre sou perseguido. Passo por diversas regiões diferentes. Não consigo ver as caras dos perseguidores, eles atiram em mim. Eles querem um mapa que está desenhado numa pele, pergaminho, coisa assim. Um mapa rústico rabiscado com um tinta natural, parece sangue misturado com resina vegetal. Nele estão várias figuras de animais, cobras, pumas, peixes. Construções, caminhos e algumas palavras como: taças, ouro, gemas, pedras. Reduções. São Miguel Arcanjo, São Borja, Santo Ângelo, São João, São Luiz, São Nicolau. Nada faz um sentido claro.

- Vamos dormir, amanhã de madrugada temos que tirar o leite para eu levar em Canguçu, e tu vais construir o cercado do pasto.

Quando faleceu o chefe da Família Loyola, Firmino López Loyola, embora, já na meia idade tinha filhos menores. O Anthony tinha quinze anos e o Pedro ia completar quatorze no próximo mês. A viúva, a Dona Joaquina, era bem mais jovem, gozava de boa saúde e há muito que dirigia os negócios da família, devido a doença do Firmo, que sofrera um AVC e passava os dias na varanda sentado na cadeira de rodas olhando a volta do rio.

Eram agropecuaristas da região do Rio Camaquã. Criavam gado leiteiro da raça Jersey. Animais pequenos, bem adaptados ao clima e pastos nativos da região do bioma pampa. Os ancestrais da família tinham vindo lá das missões numa época longínqua, há várias gerações passadas. Construíram ali a Fazenda Remanso.

Esse rio, o Camaquã, que atravessa vários municípios gaúchos serpenteia desde sua nascente no município de Bagé até onde deságua na Lagoa dos Patos no município de Camaquã. Visto lá de cima parece uma grande serpente de tanta volta que dá. Numa dessas voltas que quase fecha formando uma imensa ferradura foi que o ancestral Loyola escolheu para fincar seus marcos de posse.

Não dava para definir bem se aquele objeto ali enterrado era de fato uma panela de barro ou um vaso chato com tampa. Estava lacrado com uma espécie de cera ou betume muito endurecido. Mas tudo indicava que era uma arte indígena antiga pela forma e desenhos que apresentava nas laterais, mas principalmente na tampa.

Tony sabia por outros objetos antigos que vira na casa de seus avós que se tratava de artefatos das antigas reduções guaraníticas. Ao tocar naquele objeto sentiu um frêmito por todo o corpo e lembrou de outro sonho recorrente com muita nitidez desde a mais tenra idade, outro sonho nítido: sonhava que estava saindo pelos fundos da catedral de São Miguel Arcanjo com uma bolsa que apanhara atrás do altar de pedra, antes dos invasores entrarem. Corria pelo bosque e ouvia cantos de hinos sacros e orações, feitos pelos jesuítas, as mulheres e as crianças encerrados no salão de pregação e instruções, entrecortados por gritos de guerra dos índios e tiros, tão altos que pareciam trovões. Passava por vários lugares até chegar à beira de um grande rio, atravessava um círculo de fogo no capim alto e entrava numa canoa de um único tronco. Acordava molhado de suor.

O desenho da tampa era uma cobra esticada com a cabeça erguida e com a língua bífida apontando diretamente para a frente. Conforme as histórias do seu avô isto era indicativo de tesouro enterrado a uma distância multiplicada pelo tamanho da cobra, numa escala em que cada centímetro no papel equivaleria cem metros no terreno. A cobra esticada indicava que estava, em linha reta, a uma distância de quinhentos metros, numa altura de vinte e quatro metros acima. O seu avô sempre falava que havia um tesouro muito grande enterrado nestas terras, e que se alguém revolvesse com diligência o terreno de leste a oeste e norte a sul encontraria os vestígios e indicação precisa do ouro. Ninguém levava a sério. Ele deveria estar falando por metáforas para incentivar o amanho e cultivo da terra.

Mas agora tinha encontrado aquele objeto por puro acaso. Estava cavando um buraco para fincar ali o moerão do canto de uma nova roça destinada ao plantio de pasto para as vacas leiteiras. Já tinha uns quarenta centímetros de profundidade, quando sentiu que a pá bateu em algo duro que produziu um som esquisito. Deitou-se no chão e examinou com cuidado.

Com as mãos foi tirando as terras soltas de cima e da volta da “Panela de Barro”. Olhou e viu os desenhos, verificou que estava bem incrustada no chão, tapou de novo e deixou no mesmo lugar, sem mudar a sua posição. Foi chamar a sua mãe e o seu irmão. As casas ficavam lá embaixo na proximidade do rio, a mais ou menos um quilometro de distância dali. Quando chegou na porta da cozinha, a mãe estava acabando de fritar bolinhos de chuva para o café da tarde. O seu irmão tinha recém-chegado de Canguçu e estava desencilhando o cavalo. Deixou o irmão chegar junto à mãe, então, falou com a voz alterada, ainda sôfrego:

- Achei o tesouro dos jesuítas!

- Não! de novo! Andastes sonhando outra vez! É esse sol na cabeça! Falei para usar o chapéu de palha.

- Não, mãe. Desta vez estou bem acordado e toquei com as minhas mãos. - O Pedro acreditou no irmão e perguntou:

- Onde está o tesouro?

- Lá na colina, onde estamos fazendo o cercado para a roça nova. – A mãe interveio autoritária.

- Psiu! Vão lavar as mãos vocês dois. Vamos tomar café. Depois me conta essa história direitinho. Dona Joaquina fez uma oração e tomaram café em silêncio.

- Agora, fala Tony.

- Não mãe. Vamos lá ver antes que anoiteça.

Subiram a encosta suave da colina, onde a terra já havia sido lavrada na lua cheia anterior para o plantio na próxima lua minguante. Chegaram no local com uma braça de sol sobre o rio. O reflexo dele parecia uma brasa molhada. Terminaram de retirar o pote da terra. Tiveram o cuidado de marcar no terreno a direção que a cobra esticada estava indicando. Quando retiraram completamente o vaso de barro sentiram que havia alguma coisa embaixo. Era uma espécie de pequena arca ou cofre de bronze, com uns vinte e cinco centímetros de comprimento por dez de largura e dez de altura, lacrado também. Retiraram os objetos e levaram para casa.

Mas antes de descer a colina, olharam para trás, na direção apontada pelo desenho da cobra. A mais ou menos meio quilometro dali avistaram a guarita. Esse acidente natural do terreno constava de um platô isolado, arredondado com mais ou menos cinquenta metros de diâmetro, numa altura estimada entre vinte cinco a trinta metros. Paredões abruptos gastos pela erosão de séculos. Se erguia no meio do “manantial” que constituía uma armadilha mortal para os animais incautos que tentavam buscar a sua pastagem verdejante. Em cima, nas beiradas era guarnecido de umas arvores de espinhos, fechadas, intransponíveis. Bem no centro do círculo estava localizada a maior e mais frondosa árvore de toda a fazenda. O umbu gigante. Ninguém, que se saiba, tinha subido até lá, apenas as águias e os falconídeos criavam suas famílias ali.

À noite, após o jantar retiraram os objetos do saco de aniagem, colocaram dentro do tacho de fazer sabão, cheio de água fervente. Depois pegaram e colocaram sobre a mesa de refeições. O lacre amoleceu. Abriram primeiramente a panela de barro. Dentro tinha uma espécie de pratinho e uma taça de ouro. E dentro dela um pequeno pergaminho contendo um mapa quase desaparecendo. O mapa mostrava a ferradura do rio, uma data quase apagada 1754 ou 1759. No centro o desenho de um movimento de terra semelhante a guarita e sobre ela um sol com as letras IHS. Sobre a barra horizontal da letra central uma cruz latina. Depois com todo o cuidado abriram o cofre de bronze. Dentro dele encontraram um barra de ouro com aquelas mesmas inscrições do pequeno mapa.

Dona Joaquina guardou a patena e o cálice dentro do oratório da família, uma peça de madeira nobre que acompanha os Loyola há várias gerações. Colocou o cofre com a barra de ouro embaixo da cama. No outro dia cedo foram os três de charrete até a cidade de Bagé. Conversaram com o gerente do Banco Sicredi. Depositaram o ouro como garantia para os empréstimos que fizeram para aplicar na melhoria da fazenda e incrementação no negócio do leite, na compra de animais de raça mais apurada, máquinas de ordenha e um meio de transporte motorizado.

O Tony não teve mais aqueles pesadelos de correrias e perseguições por terra, água e fogo. Agora o sonho era bem diferente. Ele era um enorme falcão que sobrevoava a guarita. Era noite escura, mas o umbu gigante estava totalmente iluminado. O brilho vinha de dentro do seu majestoso tronco. Aproximou-se e seus olhos de raio X vislumbraram ali dentro dezenas de barras de ouro, pedras preciosas e pergaminhos com mapas rabiscados.

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Flávio da Luz de Oliveira

E-mail: osires998@gmail.com

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